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O que vês dessa janela?

A estranheza é uma coisa que cresce como a erva daninha: a uma velocidade estonteante e sem darmos por ela. Costumamos dizer Não sejas um estranho quando alguém se vai embora para outra parte, esperando com isto uma manutenção esporádica do contacto; mas há dentes-de-leão para apanhar todos os dias, ou quase todos os dias, mesmo quando não se vai para parte significativa. Mesmo quando se fica. Por isso é que gostamos de saber onde pára o outro, tal como retiramos conforto em saber que podemos sempre regressar a (uma) casa. Sempre me pareceu, aliás, um direito poético nos confinamentos pandémicos: a salvaguarda do regresso ao domicílio. Podíamos ir e prevaricar mas com a certeza e o conforto de que teríamos o caminho de volta desimpedido.

Não precisamos de saber tudo sobre a outra pessoa, apenas de que ela se encontra, que calca um chão firme e que consegue ver um bocadinho de todos os lados em todo o lado para onde quer que olhe, no sítio onde está. Nem interessa muito ter de cor se está num país diferente, numa cidade diferente; pode até estar numa ilha do outro lado do mundo, que o que realmente tem de ser comunicado através dos fios é se onde ela está a faz sentir que está em território inimigo ou hostil de alguma maneira.

Passamos a vida a situar pontos na superfície do globo, a traçar linhas imaginárias em torno de corpos, desconhecendo as suas exactas latitudes e longitudes — pois a verdade é que não precisamos de tamanha precisão para que nos encontrem e circunscritem: uma palavra apenas apanha-nos onde cairmos vivos. Palavra essa que pode vir sob a forma de um telefonema, de uma mensagem, de uma partilha de um meme, de uma música ou de um outro graveto que nos tenha feito lembrar essa pessoa. Acima de tudo, precisamos da confirmação de que não somos os únicos a olhar e a pensar o céu a dado momento.

«Uma palavra é livro para quem sente», e quem diz livro diz mapa carta abrigo apeadeiro.

cenas.vip (Numa parede de Coimbra, abril de 2023)